O dia começou logo as 5:30h com o despertador incomodando. Pensei durante alguns segundos em desligá-lo e esquecer o fato de que deveria levantar para ir voar. A preguiça me segurou até abrir a cortina do quarto e ver aquele céu azul já com leves formações matinais.
Olympio e eu corremos para a mesa do café da manhã e fomos logo apressados por Dioclécio (nosso resgate), que após anos trabalhando no XCeara, sabia que aquele dia poderia ser especial. Saímos do hotel por volta de 6:40h.
No trajeto a rampa, em meio as tradicionais bocejadas pela falta de ritmo de acordar cedo, já começamos a ver as primeiras formações consistentes do dia, o que fez automaticamente a adrenalina começar a correr forte na veia.
Chegamos na rampa as 7:10h e já começamos a correria para decolar o mais cedo possível. Lembro de gritar para o Dió que faria apenas um vôo treino até o município de Nova Russas, pois não estava organizado suficiente para encarar um vôo tão longo. Antes de decolar fiz um check list na minha cabeça e descobri pontos importantes que mereciam atenção. Eu tinha apenas R$6,00 no bolso, meu rádio não estava com bateria 100% carregada e não estava usando sonda para urinar em vôo, mas pensei que era apenas o primeiro dia e não me martirizei pela falta de organização.
Com uma brisinha de 15 km/h, o que me impressionou muito pelo fato de Quixadá ser conhecida por fortes ventos, decolamos sem problemas e logo colocamos 1.000 metros de altura. O jogo de xadrez estava apenas começando.
Durante a manhã a condição é muito falhada, sendo necessária muita paciência e um pouco de sorte para sobreviver às primeiras horas. Nos minutos iniciais do vôo pensei que não conseguiria sobreviver pela falta de ritmo de voar pela manhã. E outra: Os únicos dias que decolei tão cedo eu estava na companhia do Marcelo Prieto, que é um dos pilotos mais especialistas em voar nesse horário. Pensei que talvez tivesse levando o Olympio para um "prego" matinal.
Nossa primeira jogada no tabuleiro foi certíssima, acertamos em cheio a segunda térmica logo atrás da rampa e subimos ao teto de 1.000 metros novamente. Ufa... Nuvens à frente e um alívio ingênuo tomou conta de mim. Com minha confiança prematuramente retomada, aconteceu logo em nosso segundo movimento o que eu temia, ficamos muito baixo e o Olympio acabou pousando no pé da Serra do Padre (km 15) e eu como estava cinqüenta metros mais alto consegui sobreviver escorando num dos monólitos da serra. Ali fiquei por quase 10 minutos sem subir.
Bolhas desorganizadas e bem turbulentas pipocavam do monólito e não me deixavam subir como eu gostaria. Um medo de me machucar logo ali no começo liftando aquela pedra me fez tomar uma decisão desesperada. Em jogo de poker chamam de all-in. Fiz uma tirada desesperada de 90° para a direita, jogando em direção a um grupo de urubus que mal subia.
Os segundos seguintes foram de sobrevivência, pois não havia muita esperança de continuar o vôo, estava apenas a cem metros de altura. Pensei em pousar com o Olympio e decolar novamente, mas decidi acreditar em minha última tacada.
Antes de chegar ao grupo de urubus, comecei a bater em pequenas bolhas que subiam a 0,5m/s e resolvi que não era momento para desperdiçar algo que subisse. Enrosquei com a maior concentração que poderia ter em cima daquele mar de juremas com poucas opções confortáveis de pouso. Derivei junto com as bolhas confiando em que a qualquer momento um ciclo térmico poderia desprender. Meu instinto não falhou e logo enxerguei um grupo de urubus subindo forte logo atrás de mim.
Esse pequeno planeio definiria meu destino daquele dia. Meu Rei estava quase em xeque-mate e tinha poucas chances de reverter o jogo. Afundei de novo para uma altura crítica que poderia me levar para o chão facilmente, mas com muita sorte ainda havia bolhas de 2m/s embaixo dos urubus que logo me levaram para a base da nuvem novamente. Ufa... Meu Rei estava salvo novamente e consegui remontar minhas defesas.
Quando olhei em direção a rota de vôo, não acreditava como a condição estava boa até Monsenhor Tabosa (km120). Como era cedo, aquele céu lindo não representava muita segurança, afinal o teto ainda estava a 1200 metros do chão. Mesmo perdendo muito tempo no inicio, consegui recuperar o tempo perdido com decisões muito acertadas.
08h45minh da manhã e eu estava a 300 metros do chão. Altura que determina o destino do vôo pela manhã. Poucas opções me restavam para sobreviver. Mais uma vez coloquei meu instinto para funcionar e ao invés de me prender as bolhas fracas falhadas que batia nesse planeio, joguei para um juremal que já havia me salvado no ano anterior. Meu instinto mais uma vez me ajudou muito e me arrastei de bolha em bolha até engatar de novo na condição.
Nesse momento fiquei imaginando uma coisa que faz o maior sentido. Voar tão cedo com o teto a 1.000 metros do chão é como começar um jogo de xadrez somente com o Rei. É uma briga contra o relógio na qual quanto mais o tempo passa, mais peças amigas vão entrando no tabuleiro para me ajudar. Nesse momento o teto havia subido duzentos metros e pelo menos alguns peões já estavam me ajudando.
A parte do vôo seguinte foi bem fácil. Condição muito bem formada e bati meu recorde de velocidade até Monsenhor Tabosa com uma média de 45 km/h. Cheguei à serra de Tabosa por volta das 09h45min, média ideal para bater 430 km.
A cidade chama-se Monsenhor Tabosa, mas eu prefiro chamar de inferno. O vento acelera nas saias da serra e pode se tornar mortal para os desavisados que confiam na parede de serra como gatilho de térmicas. Ano passado eu já havia passado momentos de terror por ali voando de ré e então preferi não arriscar tanto. Cinco quilômetros antes da parede eu resolvi ganhar o máximo de altura possível para pular direto para o platô da serra, onde as condições de segurança aumentam muito.
Pulando para o platô de Tabosa eu prematuramente relaxei, pois para mim aquele sempre era o momento mais perigoso do vôo. Engano meu. Cruzei o platô bem rápido e logo já estava na base da nuvem fazendo meu último planeio em cima da região acidentada a direita de Tabosa. A essa hora da manhã o teto estava a 1600 metros do chão, mas como estava voando no platô da serra, meu Rei voltava a estar sozinho.
No drop da serra de Tabosa (descida da serra) foi meu momento mais perigoso do vôo. Voltei a ficar baixo em meio à região acidentada do platô e lembrei que pular para a planície que segue após a serra sem ganhar altura é quase um suicídio. Não me restavam muitas opções.
Nesses momentos tensos e perigosos costumo pensar na palavra humildade. Humildade não no sentido de comportamento com os outros, mas sim de comportamento durante o vôo. Não adianta sermos humildes com os outros se não somos humildes com nós mesmos, assumindo riscos além do nosso limite. Tento pensar nisso em cada decolagem e em cada situação de perigo que enfrento em vôo. Não adianta ter consciência do perigo sem ter a disciplina para não se expor em excesso a ele.
Olhei para minha esquerda e vi um dust devil a duzentos metros de mim com seu topo exatamente na minha altura. Havia tentado contatar o resgate segundos antes e descobri que a bateria do meu rádio tinha acabado. A minha situação não era das mais seguras. Pensei - "Tenha humildade". Resolvi enrolar por alguns segundos na descendente e esperar o dust devil se desfazer para encarar o bicho. Decisão acertadíssima. Joguei no local praticamente fazendo um top landing no platô, deveria estar a cinqüenta metros de altura sobre o chão, mas com a planície como fuga atrás de mim. Tomei alguns colapsos muito bem esperados e consegui sobreviver a pancadaria que se seguiu. Um ciclo rapidamente começou a me empurrar de volta para a base da nuvem me entregando de volta meus peões perdidos e aumentando minhas peças no tabuleiro. Teto 1800 metros do chão as 10h30min. Ufa...
Sempre soube por experiência própria que o trecho seguinte costumava ser o mais rápido do vôo. Trecho serra de Tabosa - Poranga. Mais uma vez estava errado. O Céu neste trecho ficou sem nuvens, a condição bem fraca com térmicas que raramente passavam de 3m/s.
Não informava minha posição para o Dió desde 10h, um erro grave em vôos longos, principalmente no sertão. Lembrei que tinha uma outra bateria dentro da mochila do glider nas costas da selete. "Humm!!!" - pensei. Já havia soltado as mãos dos freios e mexido na mochila da selete em ocasiões anteriores quando ainda voava de vela serial e em condições lisas. Agora eu estava no meio do sertão, com vela de competição e sem contatar meu resgate há uma hora.
Os momentos que se seguiram foram tensos. Soltava a mão para abrir o zíper e logo tinha que voltar para dar comando nas avançadas da vela. O procedimento para tirar alguma coisa da mochila é perigosíssimo, pois temos que tirar as alças dos ombros e torcer o corpo para trás tomando cuidado para nada cair lá de cima. Após dez minutos de pura tensão finalmente a bateria estava em minhas mãos. Comemorei quando coloquei de volta os ombros da selete e consegui finalmente ligar meu rádio e falar com o Dió que estava a poucos quilômetros de Novas Russas, o objetivo principal do dia.
Olhei para o relógio e fui alertado pelo Dió que minha média estava incrível e que mesmo com a condição não tão redonda no trecho que costuma ser o mais rápido de toda a rota, após Poranga poderia melhorar. Resolvi seguir o vôo.
Bati meu recorde de velocidade até Poranga, chegando lá por volta de 13h. Pensei como aquilo era incrível, estar no km 200 as 13h. Ainda restavam cinco horas de vôo.
Pulei o platô de Poranga alto e decidido a fazer pelo menos 300 km no dia. Como a condição até Pedro II (km 270) não estava das melhores, com nuvens esparsas e grandes buracos azuis, resolvi baixar a velocidade para garantir mais um 300 km no currículo.
Após meu Rei se virar quase sozinho durante as cinco primeiras horas de jogo, a essa hora do dia o teto já estava a 2500 metros do chão. O tabuleiro já contava com muitas outras peças amigas e minha confiança, após voar tão baixo no início, estava grande.
Cheguei alto a esquerda de Pedro II por volta de 15h30minh e fiz a seguinte pergunta ao Dió: "Será que vai ser hoje Dió??" A resposta foi motivadora...
O estímulo de Dioclécio foi determinante em minhas decisões seguintes, e minha ansiedade em quebrar o recorde começava a brotar. Quando me aproximei de Piri Piri (km 315) a ansiedade quase me colocou no chão. Fiz um planeio longo acreditando que chegaria numa queimada perto da cidade. Afundei tanto na tirada que não sobrou altura para alcançar a queimada. Em cinco minutos eu consegui perder todas as minhas peças do tabuleiro e me sobrou apenas o Rei novamente me dando sinal de alerta para não tomar o xeque-mate.
Nesse momento lembrei das difíceis horas da manhã e resolvi que o vôo não poderia acabar ali. Pulei um lago logo antes de Piri Piri e fui a 300 metros do chão. O chão estava perto, mas minha cabeça estava lá em Barras (km 370 e meu antigo recorde pessoal). Tive que fazer um trabalho de concentração forte para focar ali naquele difícil momento do vôo, manobra complicada após quase 9 horas de vôo.
Ao invés de me entregar ao cansaço, eu resolvi que deveria lutar até o fim pra subir. Finalmente após um stress psicológico de vinte minutos querendo subir sem conseguir, pulei de bolha em bolha e consegui engatar na queimada que era meu objetivo trinta minutos antes. Base da nuvem: 3000 metros. Minha rainha entra no tabuleiro.
Sem querer perder muito tempo e sabendo que minha briga era contra o relógio, comecei a resgatar da memória meus momentos finais do vôo de 370 km do XCnordeste 2006. Lembrei que havia ganhado minha última térmica em Piri Piri e que havia realizado meu último planeio até perto do município de Barras.
Nesse momento pensei que ali era a minha única chance de finalmente dar o meu xeque-mate. Após sofrer o dia inteiro só perdendo peças e deixando meu Rei solitário, chegara a hora de entregar algumas peças para assim conseguir iludir o adversário (relógio) e ganhar o jogo.
Tomei a difícil decisão de abandonar a térmica da queimada em cima de Piri Piri sem chegar na base, tirando com 2600 metros de altura. A minha frente algumas nuvens um pouco estratificadas representando que o fim da atividade térmica estava próximo. Era arriscar para ver, pois não adiantava eu ficar em Piri Piri subindo até a base e perder esses preciosos minutos finais do vôo. All-in de novo. Agora ou nunca.
Meu instinto não me decepcionou no final do vôo. Encontrei mais uma térmica de 2m/s no meio do caminho até Barras e logo vi que o recorde brasileiro, sulamericano e mundial de montanha estavam bem perto. Minha rainha entrou no jogo agressiva e logo estava bem próxima de dar o xeque-mate no meu maior adversário: o relógio.
Subi, subi e subi para garantir... A euforia tentou tomar conta e fiz de tudo para me conter. Meu último contato com o Dió havia sido feito em Pedro II e quando percebi que deveria informar minha posição para ele, descobri mais um pequeno probleminha: meu rádio estava de novo sem bateria. Para não morrer de arrependimento, resolvi que voltaria de qualquer jeito, de carona, andando ou até no lombo de um jegue.
Como ainda eram 17:00h, meus cálculos de planeio final não foram corretos. Havia ainda atividade térmica e portanto havia descendentes pelo caminho. Totalmente diferente de 17:30h, quando acaba a atividade e a restituição permite planeios monstruosos. Meu cálculo foi baseado no meu último vôo até Barras onde percorri quase 40 km no meu último planeio. Cheguei em Barras a 1500 metros do chão.
Esse momento foi talvez meu único grande erro de todo o vôo. A direita de Barras eu consegui encontrar uma térmica de 1,5m/s. Comecei a subir já contaminado pela euforia. Cansado, desidratado, com fome, sem dinheiro no bolso, louco para urinar e sem contato com o resgate, tomei uma decisão estúpida de pegar a filmadora para gravar meus momentos finais do vôo.
Filmei durante cinco minutos subindo na última térmica do dia até perdê-la por falta de concentração. Desliguei a câmera e sem pensar tomei a decisão de não voltar para rastrear a maldita térmica novamente. Mais 100 metros subindo eu varava os 400km. Se colocasse na base ali, talvez chegasse nos 410km. "Ahhh se eu pudesse voltar no tempo..."
Num ato de desespero para contatar o Dió, troquei a bateria do rádio pela a antiga que havia acabado lá em Tabosa. Para a minha sorte ela funcionou e as palavras do Dió foram inesquecíveis: "Você está no visual meu velho, parabéns pelo recorde, você merece..."
Pousei numa estrada de terra a caminho de Miguel Alves, em meio a meia dúzia de casas, numa vila chamada Anjica. Encontrei por lá a Dona Elza que me recebeu com um sorriso de orelha a orelha bem parecido com o meu. Se o santo Dioclécio não estivesse me seguindo no visual, talvez eu tivesse que dormir ali, o que acredito que não seria um grande problema pela receptividade de todos.
Total de 10 horas e 11 minutos de vôo, com 397,7 km percorridos, média baixíssima de menos de 40km/h, mas com todas a adversidades uma vitória sem sombra de dúvidas. A gente sempre busca a perfeição. Não fui perfeito e não sou perfeito, mas nesse dia eu cheguei bem perto, uma pena esse erro no final.
Obrigado meu Deus por tomar conta de mim durante todo o vôo e me proporcionar essa oportunidade de dividir essa experiência com meus amigos e interessados no assunto.
Obrigado Marcelo Prieto e André Fleury por me ensinarem tudo sobre como voar no Sertão e por me acolherem como filho durante o expedição nordeste 2006 da SOL.
Obrigado Dioclécio pela parceria e pelo constante estímulo durante o vôo. Um personagem fundamental na empreitada.
Obrigado Ary pelo apoio e por acreditar em mim como membro qualificado para entrar no time da SOL.
E finalmente um obrigado especial ao meu primo querido, Rodrigo Monteiro, que me ensinou a voar e me estimulou sempre a praticar esse esporte maravilhoso.
Hoje é meu aniversário. Escrevi isso para mim. Como lembrança. Nunca escrevi nada sobre meus vôos. Esqueci de muitos momentos de perigo e de felicidade que já passei. Achei que esse valeria a pena guardar como lembrança.
Rafael Saladini.
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