Tuesday, December 04, 2007

Voo de 300 Kms no X-Ceará 2007 por Gonçalo Velez

Adoro participar no XCeará e espero conseguir ser um reincidente em cada ano!

Nesta prova voa-se em liberdade, o quanto se quer e para onde se quer, sem regras, sem limitações. Deve-se respeitar um eixo e voar-se em distância o mais longe que consigamos. Esse eixo deve ser preferencialmente a rota do vento que nos impele à sua velocidade.

Este ano os horários de descolagem adiantaram. O pequeno almoço passou para as 6h30 e o primeiro transporte para a descolagem às 7h!
Quase todos os pilotos partiam muito cedo para a descolagem. Procurei isolar-me dessa ânsia pois o que procurava era realizar um bom voo e não julgar que podia estabelecer algum recorde!
Descolar às 8h ou mesmo às 8h30 significava encontrar condições muito fracas, um tecto baixo e enfrentar um risco grande de não se ultrapassarem 20 km.
Subir à rampa demasiado cedo, para descolar horas depois implicava um desgaste muito grande pois a espera ao vento é enervante. Assim, subia cerca das 7h30-8h pois não fazia tenção de descolar antes das 9h.
Não sei por quê, achei as descolagens este ano mais fáceis. Talvez por ter levado uma asa mais rápida (Tycoon, dhv 2-3) do que a que usei nos anos anteriores em Quixadá (Tattoo, dhv 2). Além da maior velocidade em voo, esta asa infla e sobe com maior rapidez.
Carrego-a com 2 kg acima do limite superior.
São vários factores que melhoram a segurança nestas condições agressivas de Quixadá.

Quixadá, 15.11.07
Descolei às 9h10. A essa hora o tecto ainda era baixo, 1200m, e a minha intenção era seguir uma táctica de prudência: enrolar toda a ascendente que encontrasse.
Nestes ventos de 30-40 kmh de média, viajamos na deriva das térmicas que também se deslocam perto dessa velocidade.
Pouco depois de descolar fiquei baixo, km 15, e tive o sentimento de angústia do costume, de me sentir impotente para inverter um destino terrível, mas não desisti, claro. Esta era a zona da "marreca" geral.
Como já estava com algum treino naquelas condições, era o meu 6º voo em Quixadá este ano, fiz uma deriva na diagonal meio a contravento e, por sorte, entre dois montes pequenos que, provavelmente faziam acelerar o ar, soltou-se a térmica!
Consegui subir aos 1500m percorrendo vários quilómetros que me levaram para a planície de Madalena, deixando para trás os montes que envolvem Quixadá.
São os primeiros 60 km os mais críticos. A maioria dos pilotos aterra antes de Madalena por que o tecto ainda é baixo, as térmicas não são muito fortes e o relevo é um pouco incompreensível. No plano a oeste de Quixadá, voa-se frequentemente no “azul”.
No entanto, neste dia o céu estava bem populado de cúmulos.

Depois desta térmica fiz uma boa transição mas os cúmulos que tinha visado tinham esgotado a energia. Naquela zona há vários lagos e lembrei-me de o Diogo dizer que os lagos libertam sempre térmica.
Sobrevoei um lago pequeno onde tinha aterrado há dias, pensando que seria muito azar voltar a aterrar ali.
Dirigi-me para sotavento do maior lago, onde já tinha subido noutras ocasiões, e sondei o espaço, nada. Estranho.
Vou perdendo altitude e desaperto a abertura da selette pois quero estar mais concentrado no voo. Deixo-me ir para sotavento sentindo ansiedade mas acreditando que não ficaria naquele local.
De repente, sinto-a! Formava um cúmulo, e interpretei que a térmica viajaria deitada perto do chão por cerca de 1 km e depois levantava.
Uff que alívio!
Os momentos mais memoráveis do voo de distância são estas recuperações inesperadas, sobretudo quando já se olha em redor para ver quais são as possibilidades de aterragem!
Este ano apliquei pela primeira vez com sucesso a técnica de sondar o espaço.
Em voos anteriores o meu hábito quando perdia a térmica, era virar costas ao vento e “deixar-me ir que algo haveria de aparecer”.
Errado. É preferível redescobrir algo que existe (ou já existiu) do que partir para a incerteza. Neste caso, socorria-me dos instrumentos e do “esperto na cabeça” para tentar perceber que podia já estar a voar a sotavento da térmica, ou ao lado.
Muitas térmicas sofriam muito com a deriva do vento e desenvolviam-se muito “deitadas”. Senti que dominava melhor os nervos, que estava um piloto mais maduro, e senti que sofria muito menos com aquela impaciência de “voar sem ver” e o stress que isso provoca.
Voamos num meio transparente, que dá alguns indícios para quem os consiga detectar, mas se estivermos numa fase da nossa progressão em que não sabemos o que fazer, isso é muito enervante! Vamos para o chão sem sabermos porquê, nem o que poderíamos ter feito para o evitar.

Esta térmica levou-me até Madalena, km 60, numa rota a sul por onde nunca tinha passado. Aqui havia uma extensão muito grande de jurema, o mato com espinhos, que me deixou preocupado. Nesta fase perdi muita altitude pois não conseguia urinar através da minha algália.
Já há algum tempo que me esforçava, mas sem resultado. A minha preocupação era: ou mijava ou aterrava, pois o meu limite são as 3h-3h30 de voo.
Decidi que tinha de voar! Tirei a luva, abri a selette, depois as calças, arranquei o tubo, esforcei-me e… “aqui vai disto, ó Evaristo!”
Nem vi o que aconteceu por causa do cockpit à frente, mas penso que mais de metade da urina me molhou as calças e o interior da selette.
Não fez mal, ganhara outro ânimo para voar!
Depois consegui outra térmica que me fez sobrevoar toda a serra de Monsenhor Tabosa e passar à vista dos locais onde já tinha aterrado duas vezes, uma delas dois dias antes. Só que desta vez passava alto e cedo, 15h. Partilhei esta térmica com um urubu e girávamos observando-nos mutuamente, ambos com o pescoço dobrado para o lado. Respeitámo-nos sempre até ao instante em que decidi dar uma volta no sentido contrário e estraguei a nossa “relação”, levando-o a abandonar a térmica.

Em Tabosa, km 120, subi numa ascendente gerada por uma queimada e a térmica era suave, pouco rentável, mas segura.
Passei a serra de Tabosa pelo norte, por cima da estrada, e consegui nova térmica resultante doutra queimada que me levou aos 2800m.
A estrada no chão era uma longa recta para Nova Russas, e por cima tinha uma bela estrada de cúmulos.
Não sei porquê, este ano evitei entrar na nuvem… Voei bastante de acelerador sob as nuvens pois sugavam bastante, e também por ver ao longe o que pareciam congestus!
Passei o km 127 a pensar que tinha ultrapassado a minha melhor marca realizada este ano a partir de Castelo de Vide.
Foi neste troço, km 140, que sofri dois potentes frontais que me deixaram muito desconfortável, sobretudo por terem sido quase consecutivos. Estava na base do cúmulo e sentia-se uma turbulência muito agressiva e uma ascendente tipo sugadouro, algo preocupante.
Cometi o erro de abandonar a térmica para sotavento e de entrar em fortes descendentes.

A seguir a Nova Russas, km 160, tornei a ver-me a 300m do chão e a avaliar terrenos de aterragens. Mas nova térmica me salvou e levou-me para 2600m.
Adiante acontece algo de curioso: o chão sobe, dando origem a um planalto, e ficamos com um tecto mais estreito! Essa é a impressão que dá, mas o tecto também vai subindo.
Olho em redor e dou-me que conta de que não vi uma única asa durante todo o voo! Que se passa? Que é feito “deles”? Como se fala sempre demasiado no rádio, voo com ele desligado.
A organização pedia que informássemos a nossa posição sempre que aproximávamos uma baliza: número de piloto, altitude e distância da baliza.
Esta informação é importante por razões de segurança óbvias, mas também para permitir à organização posicionar veículos de transporte.

Passo Poranga, km 215, bastante alto, consigo atingir 2900m e percorro 26 km em planeio a direito. Em baixo a estrada é uma longa recta de terra com mato para cada lado. Uma zona muito preocupante se tivesse que aterrar, embora a estrada fosse sempre a salvação.
Às 16h30, km 255, consigo subir no que julguei ser a última térmica, que me levou aos 2900m outra vez.
Faço um planeio de uns 28 km numa restituição deliciosa em que a taxa de queda é muito reduzida, e as cores do final de tarde são soberbas.
Concentrei-me a aproveitar ao máximo as modestas linhas de ascendente que fui sentindo. Às vezes desconcentrava-me a apreciar a paisagem e auto-criticava-me!
Cheguei a Pedro II eram 17h e reparo que estou no km 283.
Pergunto-me: e por que não os 300 km, hein?!

Passo a sul da cidade sobre uma colina e vejo adiante um urubu que enrolava térmica. Nem queria acreditar que ainda podia haver uma ascendente aquela hora!
Era fraca mas fez-me subir 700m. O urubu e eu girávamos sincronizados, eu desconfiado, tentava olhar para trás das costas para ver se ele não me traía.
Depois subi mais do que ele e desistiu, indo ao encontro de um melhor “amigo”.
Sabia que estava próximo o momento de aterrar e fazia contas ao terreno, e sobretudo tentava adivinhar qual era a estrada principal, ou seja, o eixo lógico dos transportes de recolha para não ficar muito distante de um local conveniente.
Do ar tudo parece perto e fácil, mas quando estamos aterrados arrependemo-nos de algumas opções de aterragem que fizemos, sobretudo quando o rádio não alcança alguém!

Contudo, neste momento só olhava para o conta quilómetros: queria passar os 300 km!
Voei por cima de uma estrada e esperei, tentando sempre sentir as melhores linhas de planeio.
Aproximava uma aldeia e vi 288 km.
Lá em baixo jogavam futebol num campo grande. Em redor era arvoredo e raras clareiras.
Detectei um campo largo, bom para aterrar, e outro campo mais longe, menos bom, estreito e ladeado de árvores.
Vi 299 km e deixei-me ir… esperei.
Mal vi os 300 km dei meia volta e dirigi-me para esse campo largo.
Uff, consegui.
Eram 17h30. Não tinha comido todo o dia e antes de dobrar a asa comi duas deliciosas maçãs e três mini-bananas que transportava comigo.
O meu rádio não tinha alcance e o meu telefone não tinha rede! Pedi a um dos nativos para enviar um sms ao Chico com as minhas coordenadas.
Fez-se escuro rapidamente e saí do campo na companhia de aldeãos com uma lanterna acesa na testa.
Deram-me boleia de moto até uma mercearia no centro da aldeia onde comprei cerveja, pão e uma lata de sardinhas, pouco mais havia para comer.
Soube que estava em Mororó, município de Lagoa de São Francisco, estado do Piauí.
Fecharam a mercearia às 20h e deitei-me a dormir no chão com uma bota a servir-me de almofada, o rádio ligado à cabeceira.
O carro da recolha apanhou-me eram 1h30 e cheguei ao hotel em Quixadá às 9h, atrasado para o pequeno almoço e para outro dia de voo!

Conclusão
Este XCeará resultou numa enorme surpresa para mim pois acabei por voar o triplo do que voei em 2006!
Em 8 dias disponíveis, voei 7, num total de 18.9h.
Excluíndo o voo local de treino no primeiro sábado, voei 17.8h e 587 km de distância.
Isto equivale às médias por voo de 2h58 e de 98 km de distância.
Foi uma excelente semana!
Obrigado aos meus companheiros de viagem e de voo, Paulo Reis, Carlos Brasuka, Gil Navalho e João Brito pela amizade, e aos demais participantes, motoristas das recolhas, meninos de Juatama (os ajudas na descolagem) e pessoal da organização.
Parabéns aos recordistas do Mundo, Marcelo Prieto “Cecéu”, Rafael Saladini “Sardinha” e Frank Brown pelos 461.8 km voados em 14.11.07, a véspera do dia do voo que relato acima.

Gonçalo Velez

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