Wednesday, October 31, 2007

Relato de Rafael Saladini (mais um voo de 398 kms).

Link directo para visualizar o voo do Rafael Saladini de 398 kms realizado no dia 27 de Outubro de 2007.

Link directo para visualizar o voo do Olympio Fayssol de 358 kms realizado no dia 27 de Outubro de 2007.

Acordamos sem muitas pretensões. Uma cmada de estratos forte tapava boa parte do céu. Não existe maneira de saber se o dia será bom sem ir para a rampa. Portanto, mantivémos a disciplina e subimos no mesmo horário de sempre. Os estratos rapidamente começaram a dissipar e as formações matinais melhoraram muito o cenário.

Foi a decolagem mais cedo da minha vida: 6:55h. Oly e Cecéu descolaram dez minutos depois e logo nos encontrámos acima da rampa. Tecto do dia nos tradicionais 800m do chão e a deriva nos levando para sudoeste em direção à rota de Crateús. Formações gordas e com uma actividade constante deram um pequeno exemplo do que seria aquele dia.

No início fiquei um pouco desanimado por nunca ter voado tão longe naquela rota. Para mim, por pura ignorância, não seria um dia que o voo renderia o bastante para voar 430km. Errado. Existem sim muitos buracos e serras que podem atrapalhar a velocidade de cruzeiro, mas também existem passagens que acredito serem o segredo dessa rota. Aprendi voando.

Logo na terceira térmica nos separamos. Na cadeia de monólitos atrás da rampa, os três derivavam com uma bolha muito fraca em direção ao rotor das pedras e para completar ainda havia um juremal daqueles embaixo. Decidi então arriscar sozinho. Uma decisão que facilmente poderia ter me colocado no chão, para fugir daquele impasse e apanhar uma linha de nuvens mais aberta pelo flat em cima do asfalto de Quixeramobim. Deu certo.

Cecéu e Oly derivaram tanto que logo não conseguiam mais penetrar naquele vento Nordeste, canalizado pelos venturis formados pelos Monólitos naquele início de rota, e não conseguiram juntar-se a mim. Não tiveram outra saída a não ser encarar o rotor dos monólitos e tentar salvar o voo por lá mesmo. Enfrentaram uma turbulência desagradável, mas conseguiram encontrar uma saída daquele buraco de juremas.

A partir desse ponto não nos encontrámos mais em voo, com Cecéu e Oly voando pelo topo da cadeia de monólitos à minha direita, e eu sempre aberto pelo flat. Minha rota estava escrita, com um alinhamento de nuvens a 1.000m do chão funcionando perfeitamente e acelerando meus kms iniciais do voo. Mesmo conservador, consegui chegar a Quixeramobim rápido e logo estava a caminho de Boa Viagem.

Cecéu acabou se separando do Oly esticando na frente para tentar emparelhar em rotas diferentes e assim se aproximar de mim em poucos kms. Acabou extremamente baixo para a hora, numa situação complicada, no rotor da serra e sem conseguir subir. Definitivamente a minha decisão lá na terceira térmica do dia me trouxe uma vantagem significativa de posicionamento naquele momento. Além de conseguir percorrer toda a linha rendendo muito bem, me deixou numa posição que me conectou diretamente com outro cloud street logo após Quixeramobim, enquanto Cecéu e Oly acabaram numa região sombreada e atrasaram-se muito.

Os planeios até Boa Viagem renderam bem e fiquei baixo apenas uma vez, logo antes da cidade. Foi um momento delicado, com boa parte da área sombreada e poucas opções obvias de gatilhos. Consegui sair com dificuldade e logo cruzava pela esquerda da cidade, onde de novo consegui voltar à base da nuvem (tecto de 1400m). Cecéu nesse ponto havia recuperado bastante tempo e já se aproximava rápido, tentando conectar comigo para voarmos juntos. Porém, um pouco impaciente, acabou dispensando a sua última bolha de 1,5m/s acreditando que pudesse subir mais forte logo à frente. Caiu às 10:30h.

Com a queda do Cecéu, um desânimo quase me fez cair. O Oly estava 15 km atrás e eu não podia esperá-lo. Outro ponto que me incomodava era que não conhecia mais nada a partir daquele ponto e já havia passado momentos de turbulência severa naquela região em voos anteriores.

Antes de me aventurar pelas serras logo após Boa Viagem, resolvi analisar bem os vales e tentei imaginar os venturis. Muitos vales ali possuem uma tendência nítida de canalizar o vento meteorológico, gerando um cisalhamento forte numa determinada altura, o que pode ser perigoso para pilotos desavisados. Essa análise me posicionou bem para cruzar a serra, e não tive que enfrentar as saias transversais à rota, causa principal da turbulência.

Cheguei a um ponto em que não existe mais opções para evitar as serras, me obrigando a ganhar bastante altura para cruzar a parede com segurança. Por ser uma parede bem formada e com face virada para Leste, era um gatilho perfeito. Coloquei para dentro da núvem e decidi que deveria seguir o voo mesmo sem o Cecéu. A condição parecia redonda e eu não queria desperdiçar aquele dia.

Em dois planeios minha motivação foi sofrendo um revés forte, com uns cirros já tomando conta do horizonte e a condição azulando. Meu objectivo acabou mudando e resolvi que deveria sobreviver até Crateús para almoçar bem por lá. De Boa Viagem para Crateús existe uma área grande pouco habitada e repleta de juremas, com uma única estrada de terra ligando vilas solitárias. Fiquei baixo nessa estrada, pensando que estaria no chão em questão de minutos. Como tinha contacto directo com o resgate, fiquei bem tranquilo. Acabei rastejando por alguns quilómetros e mesmo no azul consegui salvar-me daquela roubada. Oly também não decepcionou, vindo sempre no mesmo ritmo logo atrás de mim.

Sobrevivemos bem até Crateús, separados mas rendendo bem, com o Oly fazendo uma rota um pouco mais pela direita. A condição começou a arredondar bem em Crateús e como a média de velocidade estava boa, resolvi seguir adiante. Em pouco tempo cruzei meu segundo obstáculo, a mesma cordilheira de Poranga mais ao Sul, por Tucuns. Logo estava me deliciando com os canhões fortes que desprendiam do platô, o que acelerou um pouco minha média durante 20 km.
Chegando ao km 300 de voo, o cansaço começou a pegar. Nessa altura do dia, já estava com 8 horas de voo e ainda restavam quase 3 horas de sol. Os 430 km eram perfeitamente possíveis se eu não cometesse mais nenhum erro. Fiz um esforço grande para continuar focado, comendo e me hidratando bem para não deixar o meu ritmo cair. Durante um bom tempo não ficava baixo e acabei cometendo erros logo antes de Castelo do Piauí, onde quase caí. Eram 15h30min e ainda tinha bastante tempo.

O tecto às 15h30m já batia a casa dos 3.000m do chão. Pra quem acha que isso é vantagem, eu pessoalmente discordo. A distância entre as térmicas triplica em relação à manhã, deixando as transições bem mais longas e mais susceptíveis a erro. Esse espaçamento das térmicas ocorre progressivamente durante o voo, e o piloto deve estar preparado para adequar-se a isso. A displicência de cruzar buracos azuis acreditando estar alto suficiente para pegar a próxima pode ser perigoso.

Quando cheguei ao km 340 de voo dei-me conta de que me havia atrasado, e tirando um pouco a esperança de bater os 430 km. Já o Cecéu, que me acompanhava de baixo acreditava que o recorde cairia naquela tarde. A condição estava boa, mas ele me superestimou. Errei algumas vezes no final e acabei me atrasando muito. O Oly também se atrasava constantemente em voo, chegando a ficar por vezes 20km atrás. Meu objectivo passou a ser os 400km.

Por volta do km 360, mesmo sob influência dos cirros, a actividade térmica ainda funcionava bem. Quase cometi um erro fatal que me colocaria no chão às 16h30m. Concentrei-me tanto para não cair que fiquei girando num zerinho por um bom tempo antes de conseguir subir. Mais um erro que me tirou minutos preciosos. Derivei por uns 15 km até ganhar altura, e pelas minhas experiências anteriores de planeios no fim de tarde, para bater os 400kms a partir daquele ponto eu deveria apenas colocar 2500m de altura. Errado.

Nesse momento (17:00h), Oly pousava no km 360, logo antes de Beneditinos, satisfeito com mais um grande voo em seu currículo. Também passou por momentos tensos, muito baixo com mares e mares de juremas logo abaixo. Mais um voo para recordar e uma rota inédita para ele.

Fiz o meu último planeio, saindo de cima da cidade de Beneditinos, com 2600m de altura, já não conseguindo subir mais. Comecei meu último planeio comemorando que havia feito os 400kms. Uma grande ilusão. Saí afundando muito sem entender o que estava acontecendo, afinal eram 17:20h e já não havia mais muita actividade. Teoricamente era pra render muito, mas me renderam apenas vinte e poucos km. Frustrante.

Nos últimos trezentos metros de altura, estiquei para uma estradinha de terra em direcção a vila Lagoa do Piauí (km 415). Nunca tive altura para chegar lá, mas nunca imaginei que fosse ficar tão longe da vila. Resolvi abandonar um pouso mais confortável ao lado de uma casa, para esticar o planeio até onde desse e paguei um preço caro por isso. Em vinte minutos, o sol se pôs completamente e a Lua cheia ainda não havia nascido, uma escuridão desagradável para quem não sabia onde estava e também não tinha ninguém para perguntar. Meu último contacto com o resgate foi logo antes de pousar e fiquei sem falar com o Dióclecio até as 19:30h, ali no meio do nada.

Relutei em caminhar para a casa por causa da escuridão. De cima tudo é tão obvio, as estradas parecem tão simples, mas do chão os parâmetros mudam completamente, ainda mais naquela escuridão total. A "estrada de terra" na verdade não era uma estrada, e sim uma trilha toda acidentada que mal passava um 4x4. Como estava muito cansado e meu ombro estava fadigado, inflamando e doendo muito, por comodidade, resolvi confiar que o Dió chegaria a mim.

Amarrei minha rede em duas árvores e fiquei descansando torcendo para o Dió me achar. Passou-se duas horas que havia pousado e a ansiedade começava a bater. Resolvi que deveria alimentar-me bem. Tinha um litro de água, três barrinhas e uma lata de atum. Meu desgaste em voo havia sido pesado e comecei a sentir-me meio tonto e sonolento. Tirei um cochilo de quinze minutos com o rádio colado nos meus ouvidos. Fui acordado com o resgate tentando contato por volta das 19:30h. As poucas palavras que falei com o Dió me tranquilizaram, afinal ficar no meio do sertão sozinho durante duas horas, sem contacto, na escuridão total e passando mal de cansaço, não é agradável. A Lua cheia começava a nascer, um alívio.

Às 20:00h fui contactado pelo Dió que me informou uma posição apenas 9kms de mim. Comi minha última barrinha e tomei meus últimos goles de água já na certeza de sair dali rápido. Às 21:00h a mesma voz me esclareceu a real situação. Estavam andando em um labirinto onde todos os caminhos terminavam em cercas e propriedades. Era necessário descobrir o nome do local, foi então que resolvi pegar meu GPS, marcar o ponto da minha vela e sair andando naquele caminho de vaca. Caminhei 3 km e cheguei numa casa. Tudo escuro e ninguém ao redor, me deu um medo daquela casa estar abandonada. Gritei e um senhor, muito relutante, resolveu levantar de sua cama para me atender.

Descobri que para chegar a mim o carro deveria dar uma volta enorme até Teresina e voltar através de Lagoa do Piauí. O senhor ma avisou que também havia a possibilidade de caminhar dois km através de uma mata para chegar a outra estrada que encurtaria o tempo em algumas horas. Optei pelo mais rápido. Voltei correndo e busquei minha vela. Até voltar para a fazenda com o equipamento nas costas, já eram 22:00h. Faltavam ainda os tais dois km mata adentro. A explicação do senhor parecia muito simples, mas no caminho tudo parecia confuso. Perdi-me pelas trilhas e em pouco tempo havia perdido a referência.

Eram 22:30h e finalmente encontrei uma casa, após estar completamente perdido naquela mata escura por meia-hora, e ainda passar por um cemitério no meio do nada que me deixou arrepiado. Os locais me guiaram por uma ladeira de pedras que levaria à estrada. Só às 22:50h foi a hora que enxerguei o farol do carro anunciando o sucesso do resgate. Demorou e desgastou, mas foi um sucesso. Tiveram momentos que tive certeza que dormiria no mato. Era um prazer rever meus amigos.

Acordei às 5:30h, descolei às 6:55h, voei durante 10 horas e 40 minutos, pousei as 17:40h, esperei até as 21:00h e caminhei até as 23:00h. Enfim, começamos a voltar para casa. Parámos para comer e decidimos tocar direto para Quixadá madrugada adentro. Chegámos ao hotel às 07h30m do dia 28 de Outubro. Foram 26 horas no ar.

Mais um voo de "quase" 400 km. Total de 398,3km, meu recorde pessoal, mas ainda assim um pouco frustrante para mim. Mais uma vez na trave. Os 400 km não saíram.

A esperança continua...
Afinal amanhã tem mais...

Rafael Saladini

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