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Chegamos à rampa por volta das 7:00h e verificamos que o vento estava perfeito para descolar. Resolvemos descolar o mais cedo possível para evitar uma descolagem perigosa mais tarde, quando a atividade térmica se soma ao vento.
O dia amanheceu azul prometendo condições perfeitas para bater o recorde. No entanto, durante os momentos iniciais do voo, o cenário foi mudando radicalmente, com uma camada de estratos densa condensando acima dos primeiros cumulus do dia e sombreando a rota. Um desânimo inicial quase atrapalhou o dia que proporcionaria o primeiro voo acima de 400km no Brasil.
Resolvemos nos manter acima da descolagem e esperar para fazer a primeira tirada, para não correr o risco de um prego matinal, o que seria desastroso. Decidimos enrolar até as 8:10h para garantir uma saída mais confortável. Decisão que talvez tenha salvado o dia.
Nos primeiros 20 km, chegamos a ficar baixo algumas vezes, com chances enormes de aterrar logo cedo. Porém o dia não nos decepcionou e conseguimos nos arrastar até ao km 50. Após um início complicado e muito difícil, pensávamos que já não cairíamos mais. Essa confiança toda nos traiu quando tomamos a primeira decisão errada do dia, onde acabamos ficando quase no chão logo antes de Madalena (km 60), abaixo de um cumulo que aparentava actividade, mas que já se dissipava.
Nossa dupla, Rafael e eu, trabalhamos muito bem no início, salvando o voo algumas vezes. Infelizmente, o trabalho de grupo acabou ali, com o Rafael aterrando às 10:15h.
O Céu a essa hora já prometia, com um alinhamento muito bem formado até Monsenhor Tabosa (km 120). Consegui seguir essa linha até o final, no pé da cordilheira de Tabosa.
Ao chegar à Serra de Tabosa, não conseguia entender porque o vento havia inclinado na direcção sudoeste, me jogando para a esquerda da cordilheira, local que não acredito ser dos mais seguros, principalmente com vento nordeste.
Cheguei a ficar a duzentos metros do chão na esquerda do platô de Tabosa. Nem podia imaginar onde estava me metendo. Em poucos minutos me dei conta de que aquele local, um venturi no ponto mais alto da serra, não era local seguro para voar. Uma sessão de colapsos e avanços fortíssimos chegou a fazer com que, por um breve momento, só quisesse encontrar uma aterragem segura.
Durante quinze minutos, imaginei jogar o reserva e salvar-me daquela situação horrorosa e totalmente sem controle na qual havia me metido. Mas consegui manter a frieza até ser cuspido para a planície de Tamboril. Passado o terror da Serra de Tabosa, tive a impressão de que dali em diante tudo melhoraria e que o voo ficaria mais seguro.
O tecto subiu para 3.000m do mar logo às 11:30h, o que me permitiu aumentar muito a média de velocidade até a Serra de Poranga (km 200). Em Ipaporanga, logo antes da serra, peguei a térmica mais forte da minha vida, com picos de 13 m/s e média (5s) de 10,5m/s. Pulei para o platô de Poranga pela esquerda da cidade numa altura confortável. Imaginei que se o voo rendesse ali, o recorde estaria garantido.
O único "porém" foi que o vento não estava alinhado com a rota tradicional (a de Pedro II), me jogando mais ao sul, região que desconhecia e que n¦ão aparentava ter muitas opções de aterragem e quase nenhuma estrada. Meu segundo momento de terror estava por vir. Um mar de juremas me esperava logo abaixo. Acabei errando e entrando numa descendente forte que quase me derrubou, me deixando a cem metros do chão, completamente vendido. A última opção de aterragem estava logo à minha frente e eu derivava com uma bolha muito fraca (0,5m/s) tentando subir pela última vez antes de optar pela aterragem.
Quando me aproximei da última clareira, tentei voar contra-vento para aterrar nela. Não foi uma boa ideia, pois comecei a voar para trás e percebi que se continuasse tentando acabaria nas juremas do mesmo jeito. A bolha era a minha única saída daquela situação, pois se aterrasse ali só me restaria uma opção: dormir no mato até que o resgate, com a ajuda de alguns locais da região, conseguisse me localizar e abrir caminho naquele labirinto de juremas. Com o estómago retorcido e muito baixo, mal conseguia passar minha posição para o resgate.
Resolvi que nada nesse mundo me tiraria daquela bolha, e derivei por uns quinze longos minutos até atingir 700m do chão e só ai consegui respirar novamente. A bolha acabou sumindo e minha opção foi continuar tocando com vento de cauda até encontrar uma aterragem segura.
Avistei algumas casas à minha esquerda e torci para ter altura suficiente para chegar mais perto delas. Foi aí que minha sorte começou a mudar. Arrastei-me em direcção ao povoado, batendo por fim numa bolha um pouco mais forte, que me segurou até que um grupo de urubus me levou até uma boa térmica e me tirou daquele buraco. Minha única vontade naquele momento era colocar na base da nuvem (3.200m) e fugir daquela roubada, mas não cheguei nem perto. Cheguei somente a uns 1.800m do chão, e o ciclo dissipou-se.
Àquela altura já podia voltar a pensar no recorde. Avistei uma nuvem bem formada a uns 8 km de mim e não hesitei em tocar para lá. O Dioclécio (resgate) me avisou que minha média estava óptima. Motivado, encarei umas formações de pedras muito baixo acreditando que salvariam meu voo. Caso isso não ocorresse, ao menos havia uma casa e uma opção segura de aterragem, o que me deixou bem mais tranquilo.
Minha transição não rendeu e acabei voltando a ficar muito baixo em mais um mar de juremas com aquela casa solitária sendo meu único ponto de apoio. Estava quase fazendo aproximação para pousar quando bati numa térmica de 4m/s e acabei ganhando altura suficiente para fazer a transição para a nuvem seguinte. Perguntei para o Dió nesse momento o nome da cidade naquela proa e ele me passou o município de Campo Maior (350 km). Tocando para lá, finalmente voltei a sentir o cheiro de humidade, percorrendo alguns quilómetros na base da nuvem, um presente depois dos momentos de tensão próximos do chão. A possibilidade de bater o recorde sul-americano era grande, pois eram 16:00h e eu já estava no km 360.
Foi então que a sorte mais uma vez não contribuiu, pois no final da linha de nuvens havia um grande buraco azul com uma camada grande e espessa de cirrus sombreando e acabando com a condição prematuramente (16:30h). Segui para o planeio final, na direcção da cidade José de Freitas (390 km), me segurando em bolhas fracas e falhadas para garantir pelo menos os 400km.
Conferindo no GPS, achei um ponto - P01 que acreditei ser a coordenada da rampa. Normalmente, chamo a rampa de P01 em todas as localidades que costumo voar, porém dessa vez não sei o que ocorreu, mas o P01 do meu GPS era a coordenada de um pouso que havia feito em um dos meus pregos nos dias anteriores. Voei meus últimos quilómetros me baseando erroneamente nessa coordenada, acreditando estar perto de transpor a barreira dos 400km, quando na verdade já havia passado dos 400km e já estava fazendo o planeio para os 415km. Só descobri esse facto no dia seguinte.
No planeio final, fiquei sem muita escolha, pois havia um colchão de palmeiras e cajueiros que não me permitiriam um pouso seguro. Após passar por todos aqueles momentos de pura tensão e stress psicológico durante o voo, certamente foi uma decisão corretíssima não esticar o planeio somente para ganhar mais um quilómetro no recorde.
A questão é que o cirrus não me permitiu voltar para a base da nuvem após aquela linha maravilhosa que havia percorrido, por isso fiz de tudo para maximizar meu planeio final e não tive chances de voltar a subir para esticar ainda mais meu voo.
Avisei o Dió que minha marca era de 399km, e nem imaginei que havia feito o voo mais longo da minha vida. Os momentos difíceis e delicados que passei não foram em vão.
Enfim meu sonho realizado após anos de dedicação e muitas temporadas no sertão. Pela primeira vez na história um piloto transpõe a barreira dos 400km descolando de uma rampa natural, sendo esse voo feito por um brasileiro, com equipamento nacional e no Brasil. Sem dúvida um dia pra lá de especial.
Foram 10 horas e 20 minutos de duração para percorrer 415km, decolando de Quixadá-CE e pousando em José de Freitas-PI. A SOL merece depois de anos investindo no desporto, buscando a marca dos 400km no Brasil, quase atingida na semana anterior por meu parceiro e aluno Rafael Saladini, que voando sozinho não atingiu por apenas 2,3 km, o que mostra claramente a evolução no desenvolvimento de seus equipamentos.
Deixo aqui um agradecimento especial para o projectista da SOL André Rottet, que com uma enorme competência conseguiu desenvolver essa asa especial que é o Tracer 11, que me permitiu enfrentar todas as situações extremas desse voo comportando-se de forma excelente para uma asa da categoria. Agradeço ao Ary e Fernando Pradi, por sempre me apoiarem, acreditando em meus sonhos. Obrigado Dióclécio pelo apoio constante, na função de "co-piloto", me estimulando e dando confiança nos momentos mais difíceis. Sua função na expedição XCNordeste é, sem dúvida, de suma importância para a segurança dos pilotos. Agradeço ao meu parceiro André Fleury, que durante muitos anos me acompanhou e me ensinou muito sobre esse lugar. Ao Rafael Saladini pela parceria durante a Expedição XCNordeste e por me ajudar muito durante os momentos iniciais desse e de muitos outros vos. Seguimos nossos sonhos, voando... Abraço a todos.
Marcelo Prieto, o Cecéu.
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